quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

A CRISÁLIDA E A ESFINGE

Por Arthur Ferreira Jr.'. e Kinn


Arthur Ferreira Jr.'. gostaria de dedicar este conto a Neith War e a Julian Assange, pela inspiração; e a Samuel por fornecer o espaço de sua cidade para o estranho desenrolar desta história ...


Kinn diz: “Bom, não sou bom com essas coisas, mas se tiver de agradecer a alguém por fazer renascer este dom do conto e da escrita é o Arthur, por sempre incentivar perseverante, sem nunca desistir de acreditar que um dia voltaria a fazê-lo. E não é que fiz?" 


Ambos os autores gostariam de agradecer a Umberto Eco, pelo labirinto que é O Pêndulo de Foucault. Os trechos na fonte Times foram escritos por Arthur Ferreira Jr.'., todos os outros (Verdana e Courier), por Kinn.






“QUEM SOUBER, MORRE” pichado em letras garrafais, na entrada daquele beco perto do meu escritório, me encheu de calafrios. Não era só o cadáver que eu encontrara logo virando a esquina, não era só o sangue que era visível no chão, logo abaixo do próprio grafite berrante, era o conjunto da obra. Eu sabia, sem a meno sombra de dúvida, que no dia seguinte haveria uma manchete no Diário da Crisálida , em letras também garrafais: “ESFINGE NEGRA FAZ MAIS UMA VÍTIMA”.

Os detentores dos maiores segredos da cidade, mortos um a um. E eu poderia muito bem ser o próximo assassinado, mesmo sendo um forasteiro … se era verdade que todos que passavam pela cidade de Crisálida tinham suas vidas mudadas, minha vida mudaria para morte em muito breve, se eu não fizesse nada!






E assim foi que começou o trecho deste curioso diário, coletado por uma sombra furtiva enquanto caminhava por esta peculiar cidade.
O clima era sempre opressivo, tenso, em contínuo thriller devorador devorador da esperança. A cidade parece viva, rastejando, a cada dia, um centímetro para alguma direção, dando a clara impressão que não consegue ficar parada.


Mas antes é preciso voltar um pouco fazermos algumas explicações, que nosso diarista deixou em suas impressões de forasteiro. Ele apresentou algumas de duas de nossas curiosas peculiaridades sem fazer o claro contexto. Sim, esta é a cidade chamada Crisálida e conta nossa mais famosa lenda, erigida pelo fundador que "Ninguém jamais pode entrar e sair dela, permanecendo o mesmo."


Outro detalhe peculiar é que coisas que vamos chamar de "peculiares" acontecem. Acontecem o tempo todo, embora nem todas as pessoas notem. Por trás das impressões de nosso pequeno autor podemos ver sua preocupação diante um aviso bairrista, e de suas muitas leis não escritas que cada bairro discretamente esconde, com suas feras espreitando e predando conforme seus instintos.


E quem sou eu? Ora, sou o Bibliotecário. 


Minha função é guardar o conhecimento produzido e coletado nesta cidade. Podem me imaginar como um senhor franzino, terno grafite, camisa branca e gravata borboleta, sentando numa mesa, cercado de enciclopédias, crônicas e romances deste peculiar município. Não poderiam estar mais errados sobre mim.

Mas esperem, não sou eu que sou o importante aqui, e sim o nosso pequeno fragmento, o qual retomaremos agora:



EU NÃO CONSEGUIA FUGIR, este era um dos meus principais problemas. Todas as vezes que tentei deixar a cidade antes que esse assassino me encontre, houve algum empecilho, surgiu algum problema, desde uma burocracia incompreensível a acidentes bloqueando o caminho, passando por ameaças de gangues no subúrbio.

Às vezes me vinha a fantasia estúpida de subir num dos arranha-céus de Crisálida, e num lance espetacular e cinematográfico, roubar um helicóptero de um dos megaempresários que exploram a cidade. Mas mesmo essa fantasia não vai muito longe, é só pensar nela que imagino explodir em pleno ar, tão logo chegue aos limites do espaço aéreo da metrópole.

No dia seguinte, depois de ter me escondido num hotel barato, desci para comprar jornal e lá estava a manchete que eu temia. O tabloide arrolava as vítimas anteriores do Esfinge Negra, esse nome ao mesmo tempo brega e amedrontador, que lhe foi dado pelo editor – ou sugerido pela secretária anônima, quem sabe. Um político que fez denúncias das corrupções de seus colegas. Uma prostituta que ouviu uma conversa sigilosa de um de seus clientes. O jornalista de um site, que revelou documentos confidenciais do governo. Um ex-padre que ia publicar suas memórias. Um fotógrafo de incidentes estranhos. Um alcaguete do submundo do crime. E eu. Não, eu não estava ali ainda. Mas quem sabe no dia seguinte.

Sou investidor da bolsa de valores, me mudei recentemente para Crisálida e planejava pôr meu dinheiro num empreendimento imobiliário cuja principal linha de propaganda era expor o passado histórico da cidade. Já havia me comprometido bastante, quando a obra foi embargada pela prefeitura. Depois de uma discussão calorosa com um subsecretário, voltei para meu flat e encontrei vários documentos remexidos, coisas fora do lugar. Antes de mexer em nada, desci correndo o elevador, e procurei saber com o porteiro se alguém fora visto entrando no meu apartamento. Ele disse que isso era impossível, pelo registro do circuito interno.

Transido de paranoia e medo, subi os catorze andares e abri a porta. Tudo estava como sempre costumava estar, naquelas últimas semanas. Aquilo me assustou ainda mais, porque, será que eu estava ficando maluco?

Fui relaxar e tomar um banho. Depois da ducha, estava limpo, mas longe de relaxado. Ao verificar os papéis em busca de certos argumentos na negociação com a prefeitura, percebi que … entre eles estavam alguns documentos que nunca havia visto antes.

Eu segurava um panfleto que dizia: CRISÁLIDA, COMO VOCÊ NUNCA DEIXARÁ ESTA CIDADE SEM SER TRANSFORMADO POR ELA …






Veem? ele ficou vidrado no assunto. Mas o curioso é que mesmo eu não sei ao certo de como essa história começou. A referência mais próxima que a maioria dos estudiosos acreditam e que está ligado ao mito da origem da cidade, embora não seja mencionado nele nem uma só vez. Mas há quem acredite que nessa história está claramente expresso que foi a primeira vez onde isso aconteceu.


O problema é esta sempre foi uma história que circulou na tradição oral, sendo compilada apenas muito depois. Existem dezenas de versões dela e mais surgem, conforme o sabor do narrador nos dias de hoje. Eu tenho um manuscrito aqui, datado de dois séculos atrás e mesmo ele já menciona que esta é uma versão, sem que o autor sabia se é a versão original ou não.


O que se sabe é que um grupo de desbravadores veio para estas terras e num terrível confronto com os nativos, conseguiu expulsá-los e clamar o direito de uso e de posse da daquilo que os derrotados consideravam sagrada. Ou amaldiçoada: não dá para saber ao certo, pois o manuscrito já está meio gasto. Um versão bastante pitoresca informa que a culpa de tudo foi terem derrubado ou comido de uma árvore sagrada para os nativos, o que os tornava impuros para habitar aquele lugar.


O fato é que no território onde um dia se tornou o marco central da cidade era o local onde o deus ou o demônio dos nativos costumava transitar na terra, devendo por isso, o local viver desocupado. Obviamente, colonizadores sempre ignoram tais assertivas e prosseguiram montando acampamento até toda sorte de eventos, acidentes e doenças começarem a acometer os colonos. Alguns diziam ter visto o demônio. Outros, animais marinhos em terra firme e muitos mostravam sinais de loucura, afirmando ter visto e/ou ouvido coisas além da imaginação.


Os medos da maldição e vingança dos silvícolas tomaram conta do coração da maioria, que foi se retirando do acampamento pouco a pouco.  Todos desacreditaram de seu líder, que embora fosse combatente competente, não tinha forças para lidar com algo como uma maldição.


Temos outro trecho faltando, mas em seguida a ele, vemos que o escárnio e humilhação são o tratamento dado ao nosso ilustre Fundador, como se ele fosse o culpado por toda sorte de desdém que estavam sofrendo. Como se ele tivesse lutado sozinho e expulsado os nativos? Às vezes a forma como as pessoas simplificam as coisas é bem desagradável.


De qualquer forma, o último aviso e ultimato para que o Fundador deixasse de lado sua teimosia e se retirasse com os colonos restantes, veio com o prenúncio de espessas nuvens de tempestade. Ele disse que se refugiaria na sua cabana e que só sairia de lá quando a chuva passasse, pois nenhuma chuva, deus ou demônio o tiraria daquele lugar que ele chamaria de lar!


É nesse momento que começa a mágica. Meditando dia a após dia, sem sair do lugar, sua única companhia era uma lagarta que tinha acabado de fazer a pupa dentro da choupana que ambos dividiam. Ele ficou impressionado com isto e decidiu adicionar o jejum à sua espera. A versões de quantos dias ele ficou sob a chuva variam muito. Mesmo nesse conto, mencionam algumas variantes costumeiramente ditas:


3 dias e 3 noites de chuva. 5 dias de tempestade. 6 dias de precipitação onde o céu lavava o inferno. 7 dias onde a chuva se tornava mágica e se movia por vontade própria. 11 dias de chuva, onde metade deles ela vinha do céu para a terra e na outra metade chovia do solo para o céu. 40 dias de chuva para tentar demovê-lo de continuar ali, já o dilúvio havia matado os homens sem fé nem virtude (o que nos dá o que pensar, já que nem mesmo essa teve força para movê-lo do lugar). Por fim, a versão de maior tempo de duração diz que ele passou lá O Tempo Necessário em que a pequena lagarta levou para se transformar numa borboleta.


Neste dia fatídico, o Fundador viu a pequena criaturinha saindo de sua moradia numa bela manhã ensolarada. A chuva havia terminado!
Com nova determinação e uma fabulosa aura de autoconfiança, ele conseguiu reunir os colonos novamente no marco zero, onde havia vivido com a pequena companheira e decidira batizar a cidade de Crisálida.


Espero que este pequeno entreato não os tenha distraído de nossa verdadeira história. Mas ao menos, serviu para deixá-los cientes dos medos e crenças que afligiam nosso pequeno diarista.



CRISÁLIDA, COMO VOCÊ NUNCA DEIXARÁ ESTA CIDADE SEM SER TRANSFORMADO POR ELA …

Mas que grande bobagem, pensei naquele momento. Amassei o panfleto com aquela história sobre um fundador mítico e árvores da vida e sei mais lá o quê; acho que aquele gesto foi o meu erro, pelo qual talvez pague muito caro.

Nos dias seguintes ocorreram outras invasões inexplicáveis no meu apartamento, sempre deixando para trás outros panfletos do mesmo gênero – depois da segunda vez, procurei rastrear de onde vinham, mas não havia sinal de que gráfica os havia produzido. Pareciam contar uma história maior que a do primeiro panfleto, na segunda vez; e na terceira vez, haviam várias cópias do primeiro panfleto, dispostas num bolo de quinhentas cópias. Deixadas ali, como se eu fosse um menino que distribui propaganda nas esquinas.

Ora, o slogan da Crisálida poderia ser atraente para minha campanha, mas não aquela história de vingança de espíritos cativos, libertos antes do tempo da árvore do sacrifício … então, peguei só o que me convinha, e usei na campanha publicitária do empreendimento; vejam que poupei bastante dinheiro, porque não foi necessário contratar nenhuma agência publicitária … havia até um logo no panfleto, pronto para que eu o copiasse, descaradamente.

Nem tão descaradamente, eu pensava; se alguém deixava aquilo na minha casa temporária, de maneira tão misteriosa, era porque queria que eu utilizasse o material de algum modo. E que outro modo um investidor poderia encontrar, senão o mais lucrativo?

A campanha seria muito bem-sucedida, as pessoas pareciam fascinadas pelo slogan e pelo logo; seria coroada de êxito, se não fosse um incidente inesperado. Duas mortes de operários na construção não iriam nos impedir, por mais estranhos que fossem os acidentes das primeiras semanas, mas quando um tremor de terra sacudiu o local da obra, e praticamente engoliu os alicerces tão cuidadosamente dispostos – era como se a terra houvesse se tornado lama – a construção foi paralisada.

Não teríamos dificuldades de retomar a obra, se não surgissem inúmeros entraves burocráticos, campanhas de ativistas contra o empreendimento (diziam que aquele era um local onde morreu o Fundador de Crisálida, e que a área deveria conter um monumento, e não um condomínio fechado), e até uns fanáticos religiosos que protestavam por sei lá que motivo, dizendo que o logo era um símbolo demoníaco e que o tremor que fulminou as fundações do condomínio era um sinal de castigo divino – ou na verdade, um aviso divino.

Em resumo, acabei perdendo dinheiro suficiente para me encalacrar aqui em Crisálida. Em menos de um mês, comecei a entrar em depressão. E depois, vieram os pesadelos. O terrível logo da árvore com crisálidas nos ramos, no lugar de frutos … os casulos se rompiam, e deles saíam não borboletas, mas pássaros macabros, vorazes, que se dispersavam pela planície onde eu estava … um deles me bicava, sôfrego, e no final desse sonho – desses sonhos, porque repetia-se todas as noites – eu morria e acordava em desespero.

E, tão logo esses pesadelos começaram, também surgiram pela primeira vez as notícias da Esfinge Negra. Eu me sentia perplexo, e depois de tanto sofrimento e dificuldades, tinha toda a certeza de que não podia ser uma coincidência!

Eu sabia demais. E ia morrer por isso.




Eu lembro dessa campanha. Foi o maior sucesso, em termos de propaganda, já contado na cidade. E também foi considerado polêmico, porque o slogan da cidade havia sido usado, numa frase feita, e algumas pessoas ficaram se perguntando se havia sido pago os direitos autorais da lenda. Bom, que eu saiba, lendas não costumam ter autores e, quando tem, são tão antigos que isso não se aplica.


Da mesma forma que os elementos que nosso diarista vem mencionando, desde que começou o relato. O Esfinge Negra realmente apareceu nos jornais e, em meus trabalhos, já compilei uma obra que citava uma árvore monstruosa, cujos frutos eram cabeças humanas, dos corpos que ela devorava. Mas uma árvore de crisálidas é realmente novidade.


Nossa história até o momento mostra as impressões e digressões de nosso autor. Talvez não faça sentido em alguns momentos, como por exemplo, não parece ter ainda conexão com o Esfinge negra, citado no início. Mas isso acontece porque estamos vendo os fatos fora de ordem. Quando tudo o mais estiver disposto, fará sentido - pelo menos fez sentido para mim na primeira vez que li.


O fato é que muitas vezes vemos ou ouvimos relatos assim, de conhecidos de conhecidos, que supostamente aconteceu com alguém que eles conhecem. Todos sabem o que são lendas urbanas. Mas aqui isso parece ser mais forte, como uma cidade que adora fabricar suas próprias lendas. Posso afirmar com propriedade, já que compilei muitas delas, e lhes garanto que não são como as lendas vistas em qualquer outro lugar, embora existam muitos elementos em comum.


Aliás, isso acontece o tempo todo, como na lenda de fundação e sua miríade de versões, tendo fruto proibido, árvore-mundo, maldição indígena e dezenas de outras misturas, oriundas de toda sorte de lugar. Parece-me que há um motivo especial para todas as fontes se repitam tanto. Um motivo, deliberado ou não, mas que toca o coração dos leitores de um modo ou de outro, dando força ao elemento narrado. Isso reflete, por exemplo, no nosso misterioso personagem, o Esfinge Negra. Por que ele foi batizado assim? O motivo disto e outros fatos, vocês saberão agora:



“O ESFINGE NEGRA ATACA NOVAMENTE” nas manchetes dos jornais, e um deles ficou enrolado na minha mão por um longo tempo, crispada de medo, enquanto eu tentava me livrar do ataque de pânico que sobreveio, tão logo eu voltei da rua para o quarto de hotel.

Consegui me controlar, mas uma dor de cabeça me prendeu à cama. Fiquei ali, na semiobscuridade, sorvendo minha paranoia. As bordas de meu campo visual começaram a enegrecer, a se encher de bolhas translúcidas, fazendo o medo voltar. O jornal estava largado no chão do quarto sujo e barato. Parecia que as cinzas largadas pelo meu cigarro de uma hora atrás haviam se disperso por toda a atmosfera do quartinho. Pela primeira vez, meus pesadelos me perseguiam enquanto eu ainda estava acordado.

“Se é um pesadelo,” pensei com força naquele momento, “vai passar, e eu vou acordar.” Tentei relaxar pensando na certeza do mundo real, da cidade lá fora, tão estranha, grandiosa e cinzenta. Foi quando minha paranoia desferiu um golpe certeiro: e se, naquele momento de fraqueza, aparecesse o Esfinge Negra?

Foi só pensar nesse nome terrível, nesse nome nefando, que o logo da campanha, a árvore cheia de crisálidas, penduradas como frutos vivos e trêmulos, surgiu em vislumbres súbitos, como num filme de terror antigo. A árvore se avolumou diante de mim, parecia ocupar todo o aposento, e ao mesmo tempo só estava na minha cabeça … estava dentro de mim. O tempo todo. Esse tempo todo.

Uma das crisálidas arrebentou, perto da minha orelha. Uma estalo se fez ouvir, e as borbulhas inomináveis em minha visão periférica remexeram-se com avidez. Do casulo descartado, surgiu uma escuridão. Era uma escuridão palpável, uma coisa, uma entidade, mas eu só conseguia discernir a sombra que assomava sobre meu pescoço, e o brilho cáustico de dois olhos púrpura …

“MORTAL,” bradou a voz num sussurro – o que era aquilo, aquele paradoxo na forma de voz humana?  – “Mortal, estás errado, tão errado. Não sabes de tudo, não sabes de nada …”

Me levantei, minhas pernas ganharam um vigor repentino. Da cama eu pudia enxergar o espelho na penteadeira – um espelho grande e fosco, mas que mostrava minha imagem como sempre a enxerguei, exceto pelos olhos púrpura chamejantes. Então, EU SOU O ESFINGE NEGRA, sou NYARLATHOTEP, e do meu casulo nasci. MIL NOMES TENHO, MIL NOMES TIVE, MIL NOMES TEREI. Pronunciar essas palavras obsedantes fez as cinzas sumirem da minha frente, a árvore foi se desvanecendo, e as borbulhas, sumindo; meus olhos mudaram de púrpura para um azul-cobalto profundo e brilhante.

E daquele cenário infernal, só restavam esses olhos azuis e uma sombra tênue, mas tentando desesperadamente agarrar-se à materialidade, uma sombra de formas femininas e olhos púrpuras. Como num transe, como um movimento automático, virei-me para minha criadora – criadora? Mas se sempre existi, sempre e para sempre – peguei-a pelo pescoço (uma sombra tem pescoço?) e com uma força tremenda, a arremessei contra a parede.

Um estrondo ecoou pelo hotel, mesmo que nada houvesse de fato atingido a parede. E esse nada se preparou para revidar, furiosa, e eu estava pronto para continuar a agredir a sombra, se a parede não a tragasse, deixando apenas parte de seu torso para fora, os ombros se mexendo em desespero. Agora era mais visível como uma coisa quase humana, umbrática, de olhos púrpuras, orelhas pontudas e caninos afiados, um duende de sombras vivas. A massa de escuridão que passava por seu cabelo parecia mais um amontoado de penas, do que fios de cabelo humano.

Movido por um instinto – eu me sentia como se fosse uma gralha que voasse na direção de um objeto brilhante – passei meus dedos pelas chamas púrpuras de seus olhos, fazendo com que ela gritasse de dor: “VOCÊ! VOCÊ não pode fazer isso comigo, eu te NUTRI, estive contigo A CADA PASSO desses dias ruins, te confortando A CADA ASSASSINATO que cometias … e agora você CHOCOU, é um igual a mim!” Ela praticamente grasnava de raiva, indignação e súplica misturadas.

Em minhas mãos, uma chama púrpura cintilava, e meu instinto mais uma vez me dominou – eu a engoli, como num espetáculo circense do além. Alguma coisa em minha sentia tudo aquilo tão familiar, como se repassado mil vezes, o mesmo número perante a mesma plateia. Outra parte em mim, aquele âmago humano que sempre esteve comigo, se revoltava diante daquela insanidade. Eu só podia estar sonhando – mas enquanto sonhava, era impossível interferir no desenrolar daquele pesadelo.

De alguma forma, eu também sabia que a força que a mantinha presa à parede podia também me encarcerar ali, tinha algo a ver com a cidade, a cidade viva, Crisálida. Decidi sair dali o mais rápido possível e deixar o monstro – mas ela era minha Mãe, monstro como eu, aquela vampira feita de sombras e segredos roubados – preso ali, exaurida, até conseguir se soltar, sabe-se lá quando.

Lá embaixo, empurrei longe o gerente que vinha me fazer cobranças, assustado ao me ver correndo pelas escadas, depois daquele baque vindo do meu quarto, e saí à luz do dia. Era incômoda, mas suportável. Saí vagando pelas ruas, fazendo coisas que nunca fiz, dentre elas roubar os óculos escuros de um transeunte, e roubar o sangue e a mente de outro.

Eu era um monstro e andava por um dos piores bairros da cidade, Raven Lake. No topo de um edifício de seis andares, eu contemplava a Crisálida, e sentia que ela de alguma forma me rejeitava. Tirei meu diário da mochila, e, provocando uma espécie de escrita automática, delineei meus últimos pensamentos antes de verdadeiramente me tornar o monstro que sou, escrevendo sob minha identidade anterior, o investidor cujo nome não preciso citar … mas que quem ler isto, saberá com certeza.

Eu sou Nyarlathotep, um Vulto Vulpino, um vampiro vagante. Sei que esse diário vai cair nas mãos erradas, e depois acabar nas mãos certas … você que me lê, sei que vai querer me encontrar, cara a cara. Não vai conseguir resistir ao chamado de outro imortal, tão parecido, e tão diferente de você mesmo … Bibliotecário Sinuhe.

Eu sou um fluxo imortal, indetível, e vivo, tanto quanto você está morto e é estagnado. E então? Vai permanecer intocado, imutável pela Crisálida? Ou vai vir me procurar e tentar pegar o segredo, o Mistério, a chama viva que eu roubei?







E assim termina o relato de nosso diarista. Espero que não tenham ficados decepcionados com o final. Ele não segue um fluxo linear, como o é na maioria das histórias, mas é assim mesmo, já que se trata de um diário, o que o leva costumeiramente a ser desregulado, desregrado, sem estrutura ou sentido começo-meio-fim.


Rogo, igualmente, para que não se desagradem com o "plot twist" da revelação na palavras finais desta missiva. O que é um vulto vulpino? Quem é o diarista e porque ele quer se encontrar com o bibliotecário que narra nossa história? Todas estas são perguntas justas e têm vocês todo o direito de querer elas respondidas. Mas nada disso vai acontecer. Não agora, pelo menos.


Nosso diarista comete uma infração ao brincar com nossa Biblioteca e com quem cuida dela. Bibliotecários não devem escrever textos, muito menos participar de histórias, no máximo contá-las. Mas como este lugar é uma central de compilação de muitas histórias, com certeza deve haver histórias sobre bibliotecários e até algumas histórias sobre mim.


Quem sabe se não conto elas algum dia para vocês? Afinal, são todas parte destes Contos da Crisálida que compilo.
Este conto acabou e até a próxima vez.


Sinuhe Takashima, Bibliotecário
Compilado primeira vez em "Contos da Crisálida", Editora Genaro, ano 432 10³ da Era A.







Anexo I.


Tsc, Tsc. Sempre com chavões e frases feitas. "Tudo muda exceto a mudança"; "Eu mudei porque eu quis"; "É só uma lenda". É quase divertido ver como estas pequenas criaturinhas se debatem enquanto eu brinco com elas e as troco de lugar e faço experiências com eles. Alguns são divertidos, outros sofredores, mas nunca deixei ninguém escapar. Então virou um hobby divertido, compulsivo e, algumas vezes, letal …


Desde o início – e digo desde o início mesmo – nunca encontrei ninguém que não fosse interessante de brincar. Alguns são teimosos. Outros voluntários. Temos os descrentes e os fervorosos  - um grupo, por sinal que dá muito gosto transformar. Só tem um tipo que trato como ofensa: aqueles que me desafiam! A estes e estas, uso de todos os mecanismos para atingir meu objetivo, mas nunca, nunca precisei agir diretamente. E quase pensei ser o caso desta vez.


Se tratava de um tipo bem escorregadio, esse Sinuhe Takashima, com seus dizeres de ser sempre solitário; de se isolar de tudo e todos. Era como um tigre; um predador solitário, que sai da toca, pega a sua presa e retorna para o esconderijo sem que possamos detectar os seus rastros. Sendo imortal, podia deixar para demorar em meu jogo, no laboratório onde faria dele um rato bem divertido. Mas ele não tinha graça e se recusava a brincar. Eu não conseguia tocá-lo - pelo menos não sem quebrá-lo e as suas convicções - ele me desafiou, lembram? Não se tratava mais do hobby. Era pessoal.


Mas então encontrei outros, peculiares como ele. De outras terras igualmente, e com as armas que eu desejava, para forçá-lo a participar da brincadeira. O jogo é: estão todos trancados em casa. Quem consegue ficar acordado mais tempo até ver quando a chuva vai passar? Uma dica: da outra vez não foi o Fundador que venceu.


Anexo II


"Admito. O truque com o diário foi divertido. Com ele pude encontrar sua amiga presa na parede. Foi bem instrutivo."


"Você é bem esquisito. Não consigo senti-lo como senti a sua amiga e apesar de que ela dizer que são ainda iguais. Na verdade não me interessa. Ela me disse que você roubou algo dela e que roubou algo de mim. Somos todos um bando de ladrões. Já vi meus parentes e irmãos roubarem todo tipo de coisa alheia para prolongar a vida e aumentar seus poderes, mas nunca vi ladrões esquisitos como vocês."


"Já examinei minhas memórias. Não falta nada, nem o conhecimento de nenhuma pessoa com quem convivi; todas as memórias de eventos não possuem nenhuma falta, então tenho certeza que não esqueci nada que saiba. Também já vi que não perdi nenhum de meus poderes, naturais ou adquiridos. Da mesma forma, nenhuma de minhas posses em casa desapareceu. Então, apesar de ter sido roubado, não consigo detectar que tipo de coisa pode ter tirado de mim sem que eu perceba - e observe que não há tantas coisas que possa tomar de mim sem que eu permita."


"Sendo direto. Devolva o que roubou, seja lá o que for, e poderá seguir adiante – até para roubar outra pessoa."


"O que me diz, Esfinge Negra?"



Anexo III

CHUVA.  TORRENCIAL, VENTOS que me atingem o corpo e gotas d'água que me açoitam o rosto. Não sei o que é, mas estou começando a gostar dessa cidade, mesmo que ela não goste muito de mim. A sensação da água correndo me agrada. Parece muito melhor do que as cinzas que choviam sobre o mundo anterior – aquele de onde escapei, para vim reformar uma identidade dentro da mente temerosa de um homem, cujo corpo também visto.

Não tenho condições de avaliar se esse homem está, ou não, morto. As memórias dele pouco a pouco vão diminuindo, e eu sei que a queima delas, dentro de mim, é o que me mantém nutrido. Pouco a pouco perco a consciência de que ele era um investidor, de que alimentava temores secretos, e que tinha medo de reler as poesias que escrevia quando era adolescente. Se não quiser me tornar um idiota balbuciante, preso dentro de uma casca humana, tenho de tomar outras memórias, outros segredos, outros Mistérios.

Um Mistério como nenhum outro, pois veio daquela que agora é minha mãe – um espírito vulpino como eu, que talvez agora chame-se Ereshkigal, talvez Shub-Niggurath, ou mesmo um nome pouco feminino como Benoth. Talvez esse vampiro que se chama de Sinuhe possa muitas coisas, mas usá-la para me espionar não é uma delas – quando roubei o Mistério que nela brilhava, ironicamente a deixei cega como uma toupeira.

Ela só pode ter adotado o nome de Ereshkigal, então. Segundo as memórias de um professor que drenei, depois de um sarau requintado na cidade, esse é o nome de uma deusa antiga do subterrâneo e da morte … uma toupeira sensível à luz, de fato.

A cegueira dela contagia. Estou ignorando coisas básicas, cometendo erros. Um deles foi tentar me aproveitar da cegueira dela. É por isso que meu corpo moribundo – aquele que por um tempo foi meu corpo – jaz entregue à chuva, aos ventos e à tempestade.

Alguma coisa mais forte que eu me impeliu – só posso achar que seja um desses arquétipos que me compõem, na verdade, resíduos de mundos destruídos, restos de mentes e almas destroçadas por apocalipses – e deixei a armadilha pronta para o bibliotecário. Ele entrou no hotel, e foi conversar com Ereshkigal. Sei ser naturalmente sutil – um ladrão furtivo – e dei um tempo do lado de fora do hotel, entrando depois; e depois pelas escadas; era o tempo, eu calculava, para que a cegueira daquela demônia o afetasse, e eu pudesse atacá-lo como fiz com ela, roubando o que eu precisava.

E consegui: ele estava distraído com ela. Cego, sem foco. O quarto estava bastante escuro, mas isso não fazia muita diferença. A figura de costas, falando com aquele espírito preso à parede, coagindo-a de alguma forma. Ele me dava as costas, e a feria com sua conversa melíflua. E não sei porque, ali senti uma certa raiva. Como um orgulho ferido … e ataquei com ferocidade, descuidado, em vez de dele extrair o que queria, com precisão cirúrgica, como eu desejava, e não fiz.

Minhas garras trespassaram o torso de meu inimigo (porquê mesmo ele era meu inimigo? Não tinha mais noção) e ele reagiu como um raio. O vampiro de carne se voltou em minha direção, seus olhos à primeira vista impassíveis, frios, mas eu sabia que ele estava surpreso e que havia sido ferido. Eu não devia ter muitas esperanças de vencê-lo, mas tentei. É o que nos define, nós vultos, desde que a primeira de nós saiu da Espiral Sem Limites, aquele turbilhão no além, milênios – não, milhões de anos atrás: o ímpeto, a violência, a sede de ser, de existir.

E para isso roubamos parte do que define outros seres, em diferentes cosmos, diferentes mundos, diferentes realidades. Aquela verdade me atingiu em pleno coração – vinda na forma de um soco impulsionado por uma força física extrema, e carregado de estranhas sombras que envolviam a mão de Sinuhe, sombras não muito diferentes daquelas que me definem.

O impacto foi tão poderoso, que meu corpo foi jogado pela janela, estilhaçando o vidro e me derrubando pela balaustrada. Caí com velocidade extrema, anormal – algo havia me atingido, mais do que o punho do vampiro que fora minha vítima.

As sombras. As sombras separam, a escuridão oculta, o abismo divide. Meu corpo, caído no asfalto diante do hotel barato, estava muito ferido, pela queda e pelo murro, mas ainda estava vivo – e eu tentava recuperá-lo, regenerar os ferimentos, sem sucesso. As sombras que Sinuhe empunhava, numa feitiçaria desconhecida, agiam como um veneno – elas separavam meu próprio eu de escuridão do resto de centelha do investidor mortal, o forasteiro em Crisálida, e tornavam inútil qualquer tentativa de me curar.

Sinuhe não veio atrás de mim. Pelo menos enquanto eu ainda me retorcia no asfalto, ainda vivo. Apenas três mendigos me observavam chocados, a uns cinco passos de distância. Eu arquejo dentro de mim mesmo, sabendo que, mesmo morrendo, havia vencido – eu ia me reformar em algum outro universo, e levaria comigo duas coisas de uma importância extrema, que eu não sabia mais qual era – o Mistério de Ereshkigal, e o muro de solidão de Sinuhe, aquilo que impedia de … que impedia … não sei mais. Roubamos segredos, mas nada sabemos de verdade. Bebemos o sangue da vida, mas não estamos vivos de verdade … não sei de mais nada, não sinto quase nada …

Só consigo sentir a chuva caindo sobre mim.
Forte. Cada vez mais forte.
A chuva me lava, e a tempestade me leva.





Anexo IV


"Definitivamente, estranhos.”


“Por que ele era tão frágil e vulnerável e se dizia um vampiro? Minha raça possui variação de força entre seus membros, mas nunca encontrei alguém tão frágil para se partir em dois com apenas um golpe."


"Seria porque vocês são particularmente vulneráveis aos dons umbráticos, Erishkigal? Se assim, for, você será um excelente espécime de estudo. Rogue para seus deuses para morrer nas minhas mãos quando eu extraí-la dessa parede, porque puserem as mãos em você, sofrerá um destino muito pior do que a morte."


"Eu já sofro e imagine que trabalho para ELES. São demônios muito piores do que eu. Ficaram felizes ao saber da sua presença aqui. Embora tenham me repreendido pela perda do Esfinge Negra, ficam satisfeitos com um prêmio de consolação. Isso até rendeu uma graduação e um trabalho de maior responsabilidade. Não é nada pessoal, você só está no lugar e hora errada."


"Fico levemente curioso com o que teria sido roubado de mim, já que nada me falta, que já não faltasse antes..."





Nexo 0


Hssssssssssss Sssssssshhh Hssssssssssss
He he he he, sua imunidade, meu caro Sinuhe … 
Sssssssshhh
Hssssssssssss Sssssssshhh




terça-feira, 25 de janeiro de 2011

MISTÉRIOS DO HORIZONTE

Por
Neith War e The Grey Knight, escrito de 26 de outubro de 2010 a 25 de janeiro de 2011






Houve um momento em que o desejo superou o medo, mas esse momento foi embora.  E ali, paralisado no meio da autoestrada, Dionísio se perguntava o que fazer.  Como não confundir aquele instante de paralisia com indecisão?  Mas, se havia um traço de personalidade que pouco habitava a alma de Dionísio, era a indecisão.  O que ele sentia, ali parado como se esperasse a chuva despencar sobre seu corpo e alma, era apreensão.  Ansiedade.  A apreensão do conhecimento.  Ele sabia, conhecia, e conhecendo, tinha poder.  Mas esse poder não lhe dava – ironicamente – o direito de fazer o que até há pouco estava desejando fazer.  Certamente, o arrependimento viria, tão certeiro quanto a flecha de um Cupido.



Longe dali, num barzinho super badalado, Lívia se divertia bebendo com as amigas. O som estava muito alto, um psy trance cheio de energia, os corpos movimentavam-se como um oceano de carne humana, alguns, alteradíssimos pelo uso de entorpecentes, dançavam freneticamente ao som alucinante.


Era a primeira vez de Lívia naquele bar, suas amigas haviam insistido para que fosse, achavam que ela precisava se distrair um pouco. Lívia olhou para o teto do barracão onde o bar era instalado, sentiu a cabeça girar, abaixou-se entre a multidão e com as cabeças entre as pernas, arrependeu-se de ter misturado a bebida com o alucinógeno oferecido por um rapaz que conheceu lá, nunca havia feito uso de drogas em sua vida, e agora sentia-se estúpida por estar tão mal. Abaixou ainda mais a cabeça e sentiu que ia vomitar, seu estômago doía absurdamente, com as mãos apertando a barriga levantou-se com dificuldade e foi em direção ao banheiro, as pessoas pareciam loucas dançando aquele som ensurdecedor, foi difícil passar entre elas sem levar cotoveladas e empurrões.


Quando chegou ao banheiro, ele estava vazio, suspirou aliviada por poder ficar um pouco sozinha. Molhou as mãos na água da pia e passou na testa, e com as mãos apoiadas na borda da pia, fitou seu rosto cansado. Apesar da maquiagem estar toda borrada ainda podia-se ver que Lívia era uma linda garota, algumas mechas cacheadas caíam suavemente em sua face, o contraste dos cabelos vermelhos na pele branca a deixava ainda mais sensual, seus olhos eram de um azul violeta e expressavam uma profunda tristeza por ter sido tão tola, devia ter ficado em casa. Suspirou resignada e mais uma vez molhou o rosto.  O banheiro era sujo e úmido e a fazia lembrar-se dos banheiros de filmes de terror, riu alto quando pensou nisso e falou para si mesma, “Lívia … você realmente está muy loka, amiga!”


Saiu do banheiro e foi direto para os enormes sofás dispostos ao redor da pista de dança, agradeceu mais uma vez por achar um local para se sentar, a maioria das pessoas ainda dançava freneticamente, não se cansavam de repetirem os mesmos passos música após música. Fechou os olhos por um instante, e então ouviu quando a música eletrônica deu lugar à uma outra música, Change, do Deftones, abriu os olhos assustada com a mudança brusca e teve uma grande surpresa: estava sozinha no imenso salão, esfregou as mãos nos olhos para ter certeza de que estava bem acordada, e quando olhou novamente ao redor, percebeu que o local todo estava coberto por um denso nevoeiro, as luzes coloriam de forma bruxuleante aquela névoa, a música parecia entrar em seu corpo. Lívia sentiu que seu coração iria explodir, tamanha era a força com que batia.


Do meio da névoa surgiu um Vulto que caminhava lentamente em sua direção, sentiu a respiração falhar, estava horrorizada com aquela situação, o medo dominava sua mente, e então, encolhendo-se toda no canto, colocou as mãos no rosto e começou a gritar desesperadamente, sentiu que várias mãos tentavam controlá-la e tentava afastá-las gritando ainda mais alto, então ouviu a voz familiar, era Vanessa, com uma cara assustadíssima.


“Lívia??? O que houve??”


Lívia olhou meio sem saber o que dizer, a música psy irritante continuava a tocar normalmente e não havia névoa alguma, olhou meio atordoada para a amiga e disse, “Só me leve embora daqui, Vanessa...”



Milhares de vozes se calaram de uma só vez, mas a cabeça do Guardião do Poço continuava em silêncio, empalada numa lança erguida contra os céus de cor azul, quase negra.  Raios cruzaram os céus como veias elétricas e fugazes, mas o que restava do Guardião do Poço não se abalou nem disse nada, nenhum oráculo, nem súplica: só seu olhar que me trespassava mais que a lança que o matara.


Dionísio não tinha culpa dessa estranha sinalização, postada no centro de uma encruzilhada que encontrou andando pela rodovia sinuosa, ter sido morta há milhões de anos e ainda nutrir rancor contra quem lhe fizesse perguntas.


Deve ser a chatice do serviço, pensou Dionísio.


Olhou em redor e só enxergou as brumas escaldantes ficarem mais densas, quase ultrapassando os limites do meio-fio.  Não era coisa para qualquer um, andar pela estrada que se esconde por detrás do mundo, a pé, e ser tão efetivo como uma pessoa de carro pelas autoestradas do mundo material.


O próprio tempo era diferente ali, e era muito difícil entender coisas como pontos cardeais, referências espaciais e linhas retas.  O melhor era simplesmente relaxar, andar e esquecer todas essas noções, porque se elas se aplicavam ali, seus significados eram diferentes.


Dionísio suspirou e virou a cabeça para os três caminhos que partiam do poste do Guardião.  Parecia que este não iria cobrar pedágio, mas deveria cobrar caro por informações, só que saber isso não adiantava muita coisa, porque ele ficava mudo até que a oferenda correta fosse apresentada.


E Dionísio não tinha a menor ideia do que era correto.


Em mais de um sentido.


Mas ele tinha uma vantagem, justamente por causa disso: ele era um dos Vultos Vulpinos, um Vampiro Vagante, uma sombra de olhos faiscantes, vinda das profundas do Outro Lado, passada além do Portal do Paralelo para vestir a mente e o corpo de um ser humano que um dia se chamou Dionísio Autran.


Agora ele era só Dionísio, e tinha pressa, embora muita paciência.


A chuva começou a cair, primeiro fina e depois dando sinais que chegaria a uma torrente, ameaçando esmagar quem quer que estivesse exposto na encruzilhada.  Dionísio ignorou o olhar ríspido da cabeça de olhos brilhantes, e adiantou-se até um das saídas, e não aquela por onde veio.


As brumas reagiram à chuva e ao viajante, o estrondo nos céus ficou mais alto, e foi mudando, mudando de tom e ritmo, de forma quase senciente.  Dionísio deu mais alguns passos, e o véu da passagem acariciou o seu corpo, que o sentia como duas músicas distintas unidas num só caleidoscópio sonoro.


Ali, ele não conseguia enxergar o que vinha à frente, onde ia dar, mas sabia que poderia ser visto por alguém azarado (ou azarada, quem sabe …?) o suficiente para isso.  Bom, azar para os outros, sorte para ele.





Naquela noite Lívia não conseguiu dormir direito, só conseguiu se sentir mais segura quando o primeiro raio de sol atravessou a veneziana e por isso, depois de um demorado banho deitou-se confortavelmente em sua cama.


Sua cabeça ainda doía um pouco, aquela imagem bizarra não saía de sua mente, a música, a névoa. E foi com estas lembranças que seus olhos se fecharam lentamente e então, quando o sonho já chegava para descansá-la, sentiu afundar na cama e a sensação de sufoco a fez debater-se, como se estivesse presa numa areia movediça, tentava gritar mas a voz não saía, a visão estava embaçada e sentia um cheiro estranho no ar. Viu-se num rio de sangue escurecido, milhares de corpos cadavéricos boiando á sua volta, sentiu nojo, e desespero, tentou gritar mas sua voz agora ecoava num tom agudo como se fosse o pio de uma coruja; de repente uma mão ossuda segurou sua perna e a puxou para o fundo, tentava nadar para a superfície mas era inútil, a “coisa” a puxava cada vez mais fundo e os corpos de olhos esbugalhados batiam contra seu corpo desfazendo-se deixando rastros de vermes ao seu redor, sem que ela esperasse viu-se frente a frente com uma criatura horrível, algo assustador que era muito pior do que todos os demônios de que já ouvira falar.


Soltou um grito e engoliu muito sangue, perdeu os sentidos, e então num impulso quase que mecânico, seu corpo virou-se na cama e Lívia vomitou algo parecido com lodo e sangue; continuava desacordada, com o corpo pendendo de lado enquanto vários espectros se aglomeravam ao seu redor sibilando e rindo diabolicamente.


Já faziam 10 minutos que Vanessa batia na porta da casa de Lívia sem obter resposta. “O que será que está acontecendo … não deveria tê-la deixado sozinha.” Vanessa deu a volta na casa, e forçando a porta da cozinha, conseguiu entrar, sabia que aquela porta estava quebrada e que Lívia apenas encostava um mesa para mantê-la fechada.


Subiu as escadas que davam para o quarto e quando chegou lá teve uma terrível visão: Lívia estava caída ao lado da cama em seu próprio vômito. Correu até ela e sacudindo-a gritava para que acordasse, Lívia abriu os olhos com dificuldade, e mal consegui distinguir quem estava à sua frente, sentia-se fraca e zonza.


Vanessa imediatamente pegou o celular e chamou uma ambulância.



O espaço tremulou à frente, borbulhando distorcido como um aglomerado de formas rodopiantes.  Dionísio havia ultrapassando a encruzilhada.  Suspirou, não de alívio, mas de uma sensação inesperada de cansaço: que impressão estranha era aquela, de que algo estava faltando?  Era como se sua essência houvesse ido parar de novo no Sheol, no Xibalba, no Hades, qualquer que seja o nome que os mortais deem a esse lugar que não é lugar.


Com aquele estranho peso no peito, como se de uma perda terrível, a sombra que vestia o corpo de Dionísio Autran se achou olhando para o espelho de um banheiro feminino.  Felizmente, sua chegada não foi seguida por gritos agudos, nem por um spray de pimenta no rosto.  Ainda bem mesmo, assim seus olhos verde-esmeralda, que chamavam a atenção daqueles que cruzavam o seu caminho, não sofreriam nenhum dano … por temporário que esse dano fosse, qualquer irritação ou ferimento ainda eram dolorosos.


Conforme caminhava para fora do banheiro, aquela sensação de perda foi se refinando, e a nítida ideia de estar atrasado cruzou a mente do Vulto.  Estava numa boate, e já deveria ser dia, porque não havia ninguém dançando na pista, o chão estava cheio de panfletos, sujeira, e até uma camisinha usada, e ninguém estava à vista, exceto alguém que costuma ser quase invisível, de tão ignorado: a faxineira que com seu carrinho apanhava o lixo e limpava a bagunça da noite anterior.


A moça de traços comuns levantou a cabeça na direção de Dionísio – estava abaixada, catando o esfregão que caíra no chão – e não enxergou nada, embora sentisse um leve aroma de almíscar, inédito naquele ambiente fedendo a cigarro.


Sem esboçar seu sorriso usual, o Vulto caminhou discretamente, mas passando direto ao lado da servente, incólume.  Mas que sorte, pensou Dionísio.  Que coisa melhor para roubar, que o dom da invisibilidade?  Para aquela mulher, aquilo talvez fosse um fardo, mas para ele, um mito vivo, era de uma utilidade tremenda, e um efeito muito maior e mais efetivo, ali no mundo de carne.  E até um dos três marcos do sol – que ele imaginava ser o meio-dia, pelo jeito – aquela mulher atrairia todo tipo de atenção, desejada e indesejada.  Boa sorte para ela …


O Vulto Vulpino caminhou pelas ruas, sem ser notado pelos cidadãos comuns que perdiam seu tempo, rodando como aves que ciscam por aquela cidade labiríntica, onde morava uma menina, talvez uma moça, talvez uma mulher, talvez uma centelha a despertar para um horizonte novo e cheio de sombras e sangue, chamada Lívia.



Lívia abriu os olhos e ficou alguns instantes imóvel tentando colocar as ideias em ordem. Sua cabeça estava um turbilhão, imagens e lembranças misturavam-se à fantasias.


Olhou para o sofá ao lado da cama de hospital e viu Vanessa dormindo, levantou-se e vestiu sua roupa, que estava em uma cadeira ao lado, pegou a bolsa e saiu do quarto sem nem ao menos se despedir da amiga.


Algumas horas mais tarde, Vanessa acordou assustada com uma enfermeira que a chamava.


“Moça, acorde” a enfermeira cutucava Vanessa incessantemente.


“Hã? O que está havendo, onde esta Lívia?” Vanessa ficou apreensiva ao notar que a amiga não estava na cama.


“Ah, a moça que estava neste quarto já foi embora tem algumas horas. Desculpe incomodar, mas vamos precisar deste quarto.”


Vanessa pegou suas coisas e saiu pensativa. Como Lívia podia ser tão ingrata? Nem lhe agradeceu por ter passado a noite ali com ela.  Magoada, Vanessa foi direto para casa, estava decidida a deixar Lívia se virar sozinha dali por diante.


À noite os amigos combinaram de se encontrar novamente no bar à beira da estrada.  Vanessa já havia bebido bastante e se lamentava para a turma dizendo o quanto Lívia era falsa e ingrata, nem retornara suas ligações. Nesse ponto Laura interferiu:


“Mas, Van … pense bem, Lívia anda sob forte estresse, imagine só, como você se sentiria se fosse a principal suspeita da morte de seu namorado?


Caio segurou a mão de Vanessa e a beijou.  “Você tem feito o que pode por ela meu amor, mas realmente é uma situação complicada, você mesma viu como ela ficou naquele dia em que a convencemos a vir para cá.”


Tiago emendou, “Ela nem se arruma mais, antes estava sempre bem vestida e radiante. Deve estar muito deprimida.”


Vanessa concordou, e suspirando, ergueu o copo para brindarem o fato de estarem ali reunidos, mas os copos pararam no ar, como se alguém tivesse apertado o botão de pause de um aparelho de DVD, as bocas entreabertas e os olhares incrédulos na direção da porta de entrada. No mesmo instante, o DJ colocava a música The Spy do The Doors.


Na porta, Lívia estava parada acendendo um cigarro, usava uma saia curta de couro preta e justíssima, uma blusa tomara que caia vermelha, os cabelos soltos, uma maquiagem forte nos olhos e um batom vermelho que realçava seus lábios carnudos. As sandálias de salto fino davam um balanço serpenteante ao seu corpo bem definido, conforme andava parecia deslizar pelo salão, os homens estavam feito lobos, devorando-a com os olhos.


Lívia sequer olhou para a mesa onde estavam os amigos, parecia uma outra pessoa. Caminhou até o balcão e sentou-se em um banco cruzando as pernas bem torneadas. Não demorou muito para que um rapaz se aproximasse e lhe oferecesse uma bebida, que Lívia sorrindo e esbanjando charme logo aceitou.


Vanessa surtou e queria de qualquer forma ir até lá e saber o que estava acontecendo, mas Caio a impediu. Estavam todos chocados com a cena mas os meninos acharam melhor apenas observar Lívia para ver o que ela pretendia, mesmo porque ela parecia nem ter notado a presença deles ali.


Lívia trocava olhares com o desconhecido, seus gestos insinuantes estavam deixando-o louco.  “Como é o teu nome?” perguntou enquanto acariciava a mão de Lívia.


“E isso realmente importa?” a garota respondeu enquanto descruzava as pernas lentamente e cruzava novamente.


Aquele movimento pareceu hipnotizar o rapaz, ele a desejava de uma forma assustadora. Lívia percebeu e sorriu satisfeita, terminou a bebida e o pegou pela mão arrastando-o para o banheiro masculino. Ele a seguia feito um cachorrinho.


Vanessa que via toda a cena ficou horrorizada, quis ir atrás mas foi impedida por Laura.


No banheiro, Lívia entrou em um dos vários sanitários e abaixou a tampa fazendo com que o homem se sentasse. Beijou seus lábios e depois afastou-se sorrindo.


Podiam ouvir a música que acabava de começar, Angels and Drugs de Christian Death. Lívia começou a dançar sensualmente, as mãos do rapaz percorriam suas curvas, ele estava extremamente excitado. Ela tirou a calcinha e sentou-se no colo dele que já estava com a braguilha aberta.


A música estava muito alta, seus corpos em êxtase, loucos por prazer. O homem deslizou as mãos pelos seios de Lívias e abaixando a blusa vermelha começou a chupá-los alternadamente enquanto a penetrava, Lívia movia seu quadril de forma intensa no colo do rapaz, os gemidos se misturavam com as batidas da música. Estavam quase gozando, quando ela parou e olhou para ele de forma estranha, seus olhos brilharam num tom violeta e isso fez com que ele congelasse de medo.


Ela enfiou as unhas na barriga do rapaz e fez um imenso buraco, ele gritava de dor e desespero mas seus gritos eram abafados pelas gargalhadas de Lívia e a música alta da pista de dança.


Lívia levantou-se e ajeitou a saia e os cabelos. O rapaz continuava gritando com as mãos tentando estancar o sangramento, ficou desesperado ao perceber que suas vísceras saíam e tentava, desajeitado, colocá-las para dentro. Lívia retocou o batom vermelho e encostou-se na beira da pia, de onde podia assistir a cena enquanto acendia um cigarro.


Vanessa estava inquieta na mesa, Caio teve medo de que ela brigasse com Lívia, já que estava bêbada e por isso resolveu ir até o banheiro ver o que estava acontecendo. Ao entrar no banheiro, Caio viu Lívia com um sorriso diabólico nos lábios e um rapaz em um dos sanitários gritando feito louco com as mãos na barriga.


Caio correu até ele e o sacudia pelos ombros. “O que houve? Porque está gritando desse jeito, está ferido?”


O rapaz tirou as mãos da barriga e já ia dizendo algo, quando viu que não havia nada, nenhum corte, nenhum sangue, nada.


Olhou desesperado para Lívia, que se mantinha imóvel como se nada visse, então começou a gritar com ela.


“Bruxa maldita!! O que fez comigo? Seu demônio!” levantou-se tentando ir na direção da garota, mas Caio o segurou, Lívia jogou o cigarro no chão, e sem olhar para Caio, ajeitou mais uma vez os cabelos e saiu do banheiro.





“Mistério” é uma palavra tão bela.


Inevitável não pensar nessa beleza, e no poder dessa palavra, ao vagar invisível pelas ruas da cidade onde vagara Kronos, o Maldito. Ele maculara tudo com seus rastros podres, pensava Dionísio. E ao mesmo tempo, o Mistério que envenenava o ar era tão belo, tão poderoso, tão intoxicante.


O Mistério no ar era como um fio de Ariadne, o vampiro parecia vagar a esmo, mas acabou entrando justamente onde deveria. Justo a tempo de não se encontrar com Lívia, mas a tempo de entrar num lugar terrível, na hora exata. Um hospital da periferia, desgraça institucionalizada, o caos imperava pelos corredores, e um vampiro invisível era algo tão adequado, que todos chegavam até mesmo a se desviar de Dionísio, para não se esbarrar nele. Inconscientemente. Aquela sincronicidade que move os humanos sem que eles percebam.


Lá fora o sol quase alcançava o zênite, quando Dionísio entrou, ainda sem ser visto, num vestíbulo da Unidade de Tratamento Intensivo. Duas pessoas pareciam velar uma moça acidentada, uma delas sentada numa cadeira encostada à parede, a outra também encostada na parede, mas em pé. A primeira era uma mulher digitando lentamente num laptop, os cabelos curtos num penteado excitante, os ombros nus cheios de pequenos cabelos cortados. A segunda era um homem alto, mas não muito, moreno e jovem. A mulher parecia ignorar a presença do vampiro, até que ergueu os olhos, que brilharam numa cor púrpura estranha, e voltou a baixá-los para a tela do computador.


O homem foi menos discreto e segurou o braço de Dionísio com uma força medonha, seus olhos faiscaram azuis, cheios de uma cólera celestial, e por um segundo o aperto foi tremendo, mas o homem percebeu os próprios olhos verde-esmeralda do vampiro e acalmou a pressão no braço do vampiro, mas não o soltou.


“Você é Dionísio.” era uma pergunta e ao mesmo tempo uma declaração.


“Você é Belial.” era uma zombaria e ao mesmo tempo um reconhecimento formal.


Ambos sabiam que aqueles nomes eram temporários, era sempre assim para todos de sua espécie … menos para Kronos, o Maldito. Dionísio se virou para a mulher sentada e repetiu o protocolo: “Você é Astarte.” A moça levantou a cabeça apenas o suficiente para responder: “Não, seu idiota. Meu nome é Belin.”


Dionísio riu baixo, virou-se para o outro vampiro e pediu, “Dá pra me soltar? Tem alguma coisa em você que está me incomodando.” Belial também riu, um pouco mais alto, e respondeu “Tudo nessa cidade deveria estar te incomodando, mas você é esperto o suficiente para não mexer comigo. E então, quais são os seus negócios nesses tempos estranhos?”


“Procuro uma presa,” respondeu o Vulto de olhos esmeralda, estampando um sorriso cínico. “Não estou conseguindo, me perdi pela cidade, isso nunca me aconteceu antes. Não sei por quê vim parar aqui, é uma vergonha.”


“Então pode esquecer,” falou o Vulto de olhos azul-cobalto, largando o braço de Dionísio. “Todas as presas que poderiam lhe servir devem ter sido tomadas pela passagem de Kronos, como esta meni ...” Um grito de fúria e dor ecoou pela UTI, saindo das gargantas dos quatro naquele vestíbulo apertado, incluindo a menina hospitalizada. Sons, cheiros e um vislumbre macabro tomaram a mente deles: uma explosão, poças de óleo numa pista de carros, um homem andando por um matagal, o mesmo homem cavando um buraco na lama, um carro largado na pista, dor, o desejo de esquecimento, prazer, sono.


Uma enfermeira puxou as cortinas do vestíbulo, assustada, mas Belin, a primeira a se recuperar do choque, virou-se para ela e disse numa voz firme e calma: “Volte para ao que estava fazendo antes, nos deixe em paz aqui e diga às suas colegas que tudo foi resolvido.”


“Essa cena aconteceu ontem ou vai acontecer hoje à noite? ...” a voz trêmula de Dionísio soou baixinho. “Com Kronos, nunca se sabe” respondeu Belial. “Pelo menos ele vai dormir por um bom tempo agora.  Eu quase diria, coitado dele, mas é melhor não te dar mais detalhes, é sempre bom te ver ardendo de curiosidade.”


O olhar de Dionísio ficou meio desesperado: “Não faça isso comigo. Nós somos ladrões de segredos. Eu não quero lutar com você. Por favor.” Belial esperava impassível alguma reação, enquanto Belin balançava a cabeça em desprezo. O rosto de Dionísio mostrava algumas gotas de suor, escorrendo trêmulas. Lá fora, o meio-dia chegava, e uma mão diminuta, mas de garras afiadas, segurou o braço de Dionísio, no mesmo lugar onde Belial agarrara, pouco antes.


O rosto desfigurado da menina até pouco antes desacordada se contorceu num esgar de raiva, seus olhos se fixaram no vampiro hesitante e uma voz discordante saiu dos lábios finos: “Você é Dionísio. Eu sou Ananke, filha de Nemesyn.” A apreensão e ansiedade de Dionísio quase chegaram ao nível de pânico. A garota deitada ao seu lado era um Prematuro. Um horror ancestral que, mesmo sendo Vulto, devorava outros Vultos.


O casal de vampiros recuou um passo da cama, e a menina suicida que agora se dizia chamar Ananke recitou um cântico, uma história antiga declamada por Nemesyn, a primeira de todos os Vultos Vulpinos. O medo no coração inquieto de Dionísio foi se dissipando. Quando terminou o poema, a menina deformada tinha estranhas penas afiadas saindo de suas feridas, que não pareciam mais feridas e sim minúsculas bocas. Ela era um monstro muito mais chamativo que qualquer outro de sua espécie, era o que Dionísio sabia; sabia que beberia sangue não por prazer e divertimento, como gostavam de fazer todos os Vultos, mas por necessidade, um desejo quase sexual, tão grande quanto a necessidade dos outros Vultos de devorar segredos e emoções alheias … vontade que Ananke também imporia aos mortais, como qualquer outro vampiro. Ela era um monstro e era maravilhosa, Dionísio e os outros dois sentiam algo próximo do amor, que logo se desfez, quando ela falou numa voz mais composta: “Como há séculos, somos uma ninhada mais uma vez. Ele nos despertou e ele pagará por isso. Vá, corra agora, perca suas esperanças pelas ruas sem fim da cidade, pequeno Dionísio, e vai encontrá-las nas formas belas e cruéis de sua Lívia. Vá agora … AGORA!”






Havia uma sensação de perda no ar quando Dionísio saiu do quarto, era como andar novamente pelas vielas do paralelo, não tinha mais noção de tempo e espaço, de alguma forma, havia uma força oculta e forte que o guiava naquela dimensão sombria.


À sua frente um emaranhado de escadarias que subiam e desciam, uma densa névoa pairava naquele lugar, estava ficando cada vez mais confuso. “Mas que diabos!...” Dionísio mal acabou de pronunciar as palavras e foi sugado por um redemoinho saindo novamente no banheiro daquele bar de estrada.


Com as mãos trêmulas apoiadas na pia ele aos poucos foi recuperando o equilíbrio, olhou para o espelho e viu sua imagem borrada, logo acima um letreiro em Neon piscava, algumas luzes estavam queimadas, ele apertou os olhos para tentar firmar a visão e ler, aos poucos as letras foram ficando nítidas e então uma frase” Bar RAVEN LAKE” , esse nome soou estranho e familiar dentro de sua cabeça mas então percebeu as luzes queimadas e leu novamente “Bar Craven Clarke”


“Estranho …” Sua voz soou com um misto de dúvida e curiosidade.


O som que vinha da pista de dança do bar estava alto e agitado, o que significava que era noite, e por algum motivo ele sentia que estava prestes a encontrar o seu destino. Dois caras bêbados entraram no banheiro gargalhando, mas nem notaram Dionísio, falavam muito e riam demais. Dionísio manteve-se imóvel próximo à pia, sabia que eles não poderiam vê-lo, mas algo aconteceu, um dos rapazes esbarrou em Dionísio e logo depois dirigiu à ele um palavrão, o outro riu e comentou:


“Ih, esse cara aí deve estar muito louco, olha só os olhos dele …”


Saíram rindo do banheiro, Dionísio, ainda incrédulo, olhou seus olhos no espelho, o verde havia se transformado num vermelho vibrante, talvez fosse o contato direto com aquela película paralela na qual se encontrava. Respirou fundo e saiu do banheiro, a multidão e o som alto o deixava enraivecido, odiava aquela aglomeração humana nojenta, mas precisava encontrá-la, precisava de Lívia.


* * *


Quando Lívia saiu do banheiro, Caio correu atrás dela mas não conseguiu alcançá-la, viu quando Vanessa do outro lado do salão levantou-se com as mãos na cintura, apontando para o meio da pista de dança. Lívia dançava sensualmente ao som de Killing Moon, do Echo & The Bunnymen , Caio correu até a mesa onde estavam os amigos.


“E agora pessoal? O que vamos fazer?”


Nesse instante Dionísio viu Lívia, uma sensação de estranho conforto o invadiu, foi caminhando lentamente até ela, olhos fixos nas curvas marcantes do corpo da garota, quando chegou ao seu lado a música acabou, Lívia se virou e então os olhos dos dois se cruzaram, neste instante começava a tocar Mad World, de Gary Jules & Michael Andrews, o que indicava um pequeno intervalo para que as pessoas ali pudessem recuperar suas energias para a próxima seleção dançante, mas Lívia e Dionísio permaneceram na pista, olhos nos olhos, nenhum movimento brusco, foi Lívia quem quebrou o silêncio.


“Estava esperando por você...”


Dionísio sorriu, pegou-a pela cintura e então com seus corpos grudados dançaram,era como se nada mais ali existisse.


Vanessa estava fora de si juntou suas coisas e correu para tirar Lívia de lá antes que fizesse algo do qual se arrependesse, ela sabia que havia algo de muito errado, só não sabia o que era.


Dionísio aproximou seus lábios dos de Lívia, que fechou os olhos numa demonstração de entrega, ele a apertou forte em seus braços e a beijou profundamente, mas não era um beijo comum, ele estava sugando sua vida, um breve sorriso se fez nos lábios da garota, então seus braços penderam soltos ao lado do corpo, a cabeça lentamente caiu para trás e Dionísio a colocou no chão de forma delicada, acariciou seu rosto uma ultima vez.


“Obrigado, minha pequena.”


Enquanto Vanessa e os amigos corriam na direção dos dois depois do que viram, Dionísio saiu andando pela porta, lá fora encontrou um casal que acabava de chegar num carro preto esportivo, chegou bem próximo ao rapaz e ao olhar fundo em seus olhos ele lhe entregou as chaves, Dionísio entrou e preparava-se para partir quando Caio e Tiago apareceram na porta, correram até Dionísio gritando.


“Maldito assassino! Nós vamos te pegar.”


Dionísio acelerou e entrou na pista, Caio e Tiago pegaram o carro e começaram a persegui-lo, estavam muito rápidos, de vez em quando precisavam frear bruscamente por causa de algum carro que vinha na pista contrária, logo à frente, numa curva fechada, um caminhão que vinha na outra pista não conseguiu frear a tempo, o carro em que Caio e Tiago estavam rodopiou várias vezes, batendo na traseira do carro de Dionísio, que foi jogado contra uma árvore, logo em seguida o outro carro também bateu na mesma árvore e uma enorme explosão iluminou toda aquela área, na pista o caminhão tombava se arrastando por vários metros, deixando uma imensa mancha de óleo.


Dionísio saiu do meio das chamas, sua pele levemente queimada, andou alguns metros no matagal e então encontrou uma enorme poça de lama onde cavou e satisfeito por ter conseguido o que queria, se enterrou profundamente, fechou os olhos num misto de dor e prazer, era hora de descansar, havia muito o que fazer ainda naquela cidade.


Belin e Belial estavam parados a poucos metros de onde o acidente havia acontecido, ela olhou para Belial num tom meio desconfiado.


“Você acha que ele percebeu algo?”


“Não creio. Mas só teremos certeza quando chegar a hora certa.”


Belin abraçou-se à Belial, sentia-se protegida junto dele, mas tinha medo do que ele era capaz para ter o que queria.


As duas sombras Vulpinas sumiram em meio a uma densa neblina.








Trechos deste conto na fonte GEORGIA foram escritos por Neith War
Trechos deste conto na fonte ARIAL foram escritos por The Grey Knight (Arthur Ferreira Jr.'.)